«A grande diferença entre mim e ti é que eu consigo separar bem o que é relevante e o que realmente vale a pena daquilo que não é.»
Temos por natureza uma certa afecção pelo estado ilusório. Gostamos de comer o bife, sentir-lhe o sabor, mesmo que, no fim, não haja bife nenhum. É por isso que acusamos os outros se nos ‘desiludem’, quando na verdade deveríamos agradecer-lhes. Afinal, desiludirmo-nos é o primeiro passo para percebermos o que está subjacente à imagem. Se isso é bom ou não acaba por ser irrelevante.
Hoje percorri uma calçada em completo silêncio. Via-me e parecia-me um personagem de fraca qualidade de um filme de pior qualidade ainda. Nenhum argumentista se lembraria de me meter, caso fosse um dos seus personagens, a percorrer aquela calçada e a percorrer aquele silêncio. Um argumentista habitual, daqueles que produzem a sua obra atendendo ao ‘racional’, ao que faz sentido, teria pegado em mim e ter-me-ia feito pegar nas coisas e ir para outra calçada qualquer. Os meus dias, na verdade, compõem uma obra de arte rara, uma obra exclusiva que me ofereço. Uma obra de que facilmente abdicaria.
Acho que é o Gore Vidal que nunca fala de amor com ninguém, por não saber o que a outra pessoa associa ao termo. Ele é que tem razão. De amor não se fala, não se escreve, não se grita. De amor chora-se, ri-se e morre-se. E é só isso.
«Who do you think you are
Running around leaving scars
Collecting your jar of hearts[?]»
Christina Perri
Sempre achei a misoginia, a xenofobia e a homofobia formas superiores de irracionalidade. A única postura verdadeiramente séria é a misantropia. Nenhum humano, seja de que tipo for, é merecedor de qualquer tipo de simpatia. Morrerei rodeado de animais. Ou sozinho, na mais provável das hipóteses.
Ainda estou a ouvir (devia ter começado esta frase a meio, que estou farto de frases inteiras, completas e com significado) o mascar da pastilha da senhora que me cortou gentilmente o difícil cabelo. O som perturbador e quase hipnotizante de uns dentes de meia-idade a desgraçar um pedaço de borracha com sabor. Provavelmente maltratava a pastilha para não me maltratar a mim ou a outro qualquer. Talvez alguém que lhe andasse a perturbar a meia-idade. Talvez o próprio Deus, que lhe roubou a formosura que em tempos achou ter. E o cheiro. Tenho o cheiro entranhado na roupa. Uma mistura estranha de menta e tabaco que me invadiu o sentido, só um, durante aquela meia hora. Tomei banho e não saiu. Tomei outro, irritado, desesperado e ainda não me livrei. Ficará comigo para sempre. Emanará do túmulo. E nada era pior que o vislumbre da bocarra pintada de batom irregular, apressado, gasto pela pastilha que saltava e que se arredondava em balões regulares. Em movimentos lentos, a boca abria-se, a pastilha movia-se, a boca fechava-se. Sempre assim, sempre igual, sem nunca acabar. Quando abria a boca, via-se a língua escura, experiente e viam-se os dentes, amarelecidos, uma cárie, uma falha.
Saí apressado, depois de pagar. Vinha nervoso, a tremer. Parecia que sentia a pastilha a saltitar na minha boca. Parecia que lhe sentia o sabor e o cheiro, apesar da distância. Esbarrei com um velho, que me amaldiçoou a mãe, coitada, coitado. Comecei a correr para o carro. Estava escuro. Voltei para casa.
Não percebo a tua irregularidade. És pior que a menstruação de uma anorética.
«Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?»
(Fernando Pessoa, Mensagem)
A verdade é que vou fugir nos próximos tempos. Muitos, longos meses fora de tudo, longe do mundo a que me habituaram, sem as caras, os braços, as pernas, os troncos, os pés, as mãos, os cabelos, os olhos, as bocas, os narizes, as orelhas do costume. E, apesar de bom, porque ainda vivo na ilusão de que a infelicidade se deve à específica contingência e não ao estrutural desajuste, não é suficiente. Ainda preciso das fugas no meio das multidões. Aquelas em que não fugimos para fora, mas para dentro. Aquelas em que divago sobre o saco da feira do livro, que já não tem livro lá dentro, porque o tirei para o ler, apesar de o não ter lido ainda. As outras em que reparo nas cores dos lençóis riscados, feios, na verdade. E depois recebo um telefonema. E depois do telefonema, perco toda a capacidade criativa, porque as máquinas são feitas disso, de interrupção voluntária - elas têm vontade - da humanidade que resta. Portanto, acaba aqui a fuga, regressa-se aqui ao irreal.
Tenho uma certa tendência para a auto-humilhação. E atente-se que a auto-humilhação pode não ser exterior. Aliás, o sentimento de humilhação é tanto mais forte quanto mais interior for, porquanto não o podemos imputar a ninguém.
Mais uma vez perdi.
Quando o homem descobriu o fogo e nele se queimou, o que fez foi continuar à sua volta atento, prescutante até que o dominou por completo. Eu, descendente desses, mas sem um centésimo das suas qualidades «bárbaras» e «primitivas», permito-me a infelicidade essencialmente porque me obrigo o medo. Tivesse o «pernas-curtas» e o «barba-grande», «clá-pó-ti» e «bó-mi-ré», respectivamente, adoptado postura semelhante e hoje não podia acabar este texto, limpar as lágrimas e ir fumar um cigarro.
Comprei dois do Pedro Mexia. Andava há anos para comprar aquilo, mas, não sei porquê, não comprei. Burro. O Pedro Mexia lê muito e lê bem, assiste muito e assiste bem, ouve muito e ouve bem e eu gostava de o imitar na façanha. Mas, mais do que tudo, gostava imenso de ter a sua capacidade de usar, sem qualquer prurido, a arte alheia, apropriadamente nomeada, para tornar a miserável existência interessante em letra de forma. Porque é nisso que Pedro Mexia mostra exuberante mestria: aquilo que muitos tornariam algo melodramático, aborrecido, desinteressante, é por ele transformado em objecto de arte. A miséria de Mexia é uma obra de arte, tal como eu gostaria que a minha fosse. Não se perdia tudo.
Toda a gente deveria ter um grande espelho em casa, um daqueles que ocupam paredes inteiras e nos observam em cada gesto. Precisamente porque tal espelho seria como um diário dos nossos crimes, uma prova do nosso ridículo. Víssemo-nos e tudo seria diferente, isto se alguma coisa continuasse a existir.
Pela primeira vez na vida, creio, troquei assumidamente o amor dos livros por outro tipo de amor. Virei-lhes as costas sem dó nem ressentimento. E agora vejo como fui estúpido.