Ainda estou a ouvir (devia ter começado esta frase a meio, que estou farto de frases inteiras, completas e com significado) o mascar da pastilha da senhora que me cortou gentilmente o difícil cabelo. O som perturbador e quase hipnotizante de uns dentes de meia-idade a desgraçar um pedaço de borracha com sabor. Provavelmente maltratava a pastilha para não me maltratar a mim ou a outro qualquer. Talvez alguém que lhe andasse a perturbar a meia-idade. Talvez o próprio Deus, que lhe roubou a formosura que em tempos achou ter. E o cheiro. Tenho o cheiro entranhado na roupa. Uma mistura estranha de menta e tabaco que me invadiu o sentido, só um, durante aquela meia hora. Tomei banho e não saiu. Tomei outro, irritado, desesperado e ainda não me livrei. Ficará comigo para sempre. Emanará do túmulo. E nada era pior que o vislumbre da bocarra pintada de batom irregular, apressado, gasto pela pastilha que saltava e que se arredondava em balões regulares. Em movimentos lentos, a boca abria-se, a pastilha movia-se, a boca fechava-se. Sempre assim, sempre igual, sem nunca acabar. Quando abria a boca, via-se a língua escura, experiente e viam-se os dentes, amarelecidos, uma cárie, uma falha.
Saí apressado, depois de pagar. Vinha nervoso, a tremer. Parecia que sentia a pastilha a saltitar na minha boca. Parecia que lhe sentia o sabor e o cheiro, apesar da distância. Esbarrei com um velho, que me amaldiçoou a mãe, coitada, coitado. Comecei a correr para o carro. Estava escuro. Voltei para casa.